Tomboy é um disco pesado, em vários sentidos. E como todo trabalho que segue uma obra-prima, carrega o irmão mais velho nas costas.
Carga inevitável, já que “Person Pitch” deveria ter sido um sonho. Sabe-se lá por que curto-circuito místico, biológico ou cultural Brian Wilson resolveu doar parte de seu dom de voz e melodia a um magricela americano com idéias demais na cabeça, mas deu no que deu: disco lançado, disco aclamado. E com razão – com um pouco de Cat Stevens, Kraftwerk, Enya (!), pelo menos uma coruja e mais uma miríades de barulhos não identificados, a parte urso do Animal Collective acabou lançando o tipo de música que ninguém nem sonhava existir. E foi esse surrealismo doce e suave que cativou tanta gente, em 2007.
A última viagem de Noah Lennox, nesse contexto, é gêmea do que parecia ser o disco preferido de todo mundo, quatro anos atrás. Mas se “Tomboy” e “Person Pitch” têm traços bastante semelhantes, há diferenças decisivas em seus rostos
Sinais de uma mudança sutil, mas não irrelevante, apareceram cedo, e da boca do próprio artista: “Tomboy” seria mais sombrio e menos sampleado que seu trabalho anterior, com ritmos e timbres bastante eletrônicos. E o jeito do álbum já dava as caras na série de singles que antecipou seu lançamento: a faixa-título, a primeira de suas quatro prévias, mostrava um Panda Bear parecido, mas diferente, co o rapaz praiano de “Person Pitch”: lá estavam as repetições, lá estavam os acordes insistentementes ecoantes e lá estava sua voz múltipla, disposta em várias camadas de “segundas vozes”.
Nada de novo até aí, não fosse uma ambiguidade ausente da maioria das coisasque fizera, até então. Afinal, “Person Pitch” era envolvido por enormes borrões desamples, violões e vozes organizados em células minúsculas e repetitivas, mas havia um porto seguro eternamente confiável, representado por seus vocais, destacados e inconfundíveis. No meio das circunvoluções sonoras que secruzavam, vagas e quase indistinguíveis, quem tomava a frente e se apossavados ganchos mais imediatos e memoráveis do disco era a voz açucarada do garoto, aguda e exata na afinação. Eram faixas sem limites: cada canção, em vez determinar, se dissolvia em outra, e assim por diante. Como o som do metrô que seafasta ou se achega, lento e ao longe, no fim de “Take Pills”, eram barulhos que, mesmo concretos, já pareciam um pouco fantasmagóricos.
Há ainda outros pontos que provam a gestação bivitelina cujo último filho a nascer é “Tomboy”. Formado da parte mais torta de seu pai, se mostra diferenciado desde a primeira faixa, “You Can Count on Me”. “Você pode contar comigo”, ele diz, e no ponto em que, fosse outro álbum, Lennox começaria a repetir infinitamente o mesmo verso, o rapaz leva a letra pra frente, numa melodia que vai do mais alto aomais baixo de sua voz em pouco tempo. À maneira da primeira faixa, a maioria das canções respira, dá passos largos e se retorce, melodicamente, pra só depois se esparramar com o prazer da repetição. Em vez dos refrões fáceis e imediatamente recompensantes que apareciam do começo ao fim de “Person Pitch”, Noah constrói, com a voz, estruturas maiores e mais elaboradas. E é nesse ponto que o sentido de mantra se completa. Antes aplicada à lógica melódica de refrões ocidentais ensolarados, a natureza cíclica das composições permanece, mas é o desenvolvimento das melodias, agora mais estrangeiras (cujos exemplos mais claros são “Scheherazade” e “Drone”), que permite a aproximação com o conceito hindu. Há poucos pontos em que elas vêm fáceis ou assobiáveis – ocidentais, em suma – vêm mais em ondas, muito lentamente, e vão se abrindo aos poucos.
Contrária a essa estranheza melódica, o último trabalho de Noah parece mais formados por canções propriamente ditas, ainda que de uma maneira bem peculiar. São onze idéias que, concentradas em poucos minutos (nada perto da duração colossal de uma Bros, por exemplo), se apresentam, se desdobram dentro dos próprios limites e vão embora, cada qual a seu modo – pequenas cápsulas em que se condensam universos inteiros, baseadas um pouco menos em repetições melódicas e um pouco mais em estruturas que avançam, aos poucos, sobre o mesmo tema, com a ajuda de produção segura em suas viagens.
O caso não foi sempre esse. Em versões mais antigas das faixas, datadas da série de singles que começaram a ser lançados no ano passado, a mixagem era menos precisa. As batidas eram vagas e as guitarras não tinham a força que deveriam ter, até chegar Peter Kember. O rapaz, auto-denominado Sonic Boom, cuja primeira banda foi nada menos que o Spacemen 3, deu às faixas a produção e os pequenos acertos de que precisavam: contornos mais claros, batidas mais fortes e acordes mais robustos, todos muito bem situados no espaço que um fone de ouvido é capaz de criar. E é essa produção, feita sob medida para o álbum, que estabelece grande parte de sua ambivalência.
É por isso que é difícil dizer qual é a força-motriz de “Slow Motion”, por exemplo. Se é a batida sampleada dos “Honey Drippers”, se é o cântico lento dizendo que “todo mundo sabe o que eles dizem” (“a prática leva à perfeição”, “cachorro velho não se adestra”, “melhor previnir do que remediar”), as guitarras repetitivas, lentas e lânguidas. A mesma coisa acontece quando a voz de Lennox aparece em Surfer’s Hymn, primeiro em destaque, depois abafada pelo som de mil batidas sussurradas em voz alta. A fluidez, aqui, se dá pela dinâmica de cada um desses elementos, num troca-troca eterno de quem é o mais importante, sempre em relações traiçoeiras e confusão. De forma que todo som se torne tão protagonista quanto coadjuvante, tão lembrado quanto esquecido.
É por isso que o disco talvez seja difícil de engolir, àqueles que compraram Lennox por suas rimas simples, com um quê de cantiga de ninar. O equívoco é esquecer as preces amorfas que ele tinha feito pela morte de seu pai, anos antes, em Young Prayer. Varrido pra debaixo do tapete, quando Person Pitch estourou, o disco resiste tanto a uma saída fácil e explícita quanto sua nova empreitada musical.
Ao contrário das meditações gravadas em quarto de “Young Prayer”, no entanto, o disco carrega uma tensão bastante elaborada. De um lado, o estabelecimento de limites entre as faixas, que separam tão bem “Friendship Bracelet” de “Afterburner”, uma seguida da outra. Do outro, uma vontade enorme de desnortear o ouvinte que se encontra dentro dos “lugares” que o disco apresenta.A intenção, inclusive, parece ser a de eliminar referências externas, fazer de cada experiência um acontecimento autônomo. O tempo de apreciá-las é justamente o tempo de ouvi-las: pouca coisa, aqui, perdura na mente depois que “Tomboy” passa, lento, pelos ouvidos. Pouca coisa inteira, pelo menos. O que restam são impressões, atmosferas marteladas no cérebro, um pouco atordoado e confuso, quando o caso é lembrar o que apreendeu.
“Sonhos que um dia a gente teve/ a gente teve eles de verdade?/Parece que sim/agora os teremos pra sempre”. No que pode ser a melhor canção da safra, “Last Night at the Jetty” – cujas únicas competidoras são a já citada “Slow Motion” e “Alsatian Darn” – Lennox não tem certeza de ter sonhado, se pergunta o que realmente aconteceu e se rende à forte lembrança de uma diversão passada – ”se eu me lembro do que senti, os sonhos devem ter acontecido”, parece pensar. E pouco importa o que realmente aconteceu, se a memória está lá. Verdadeira ou inventada, a incerteza é tremenda, mas prazerosa.
[“Tomboy”, Panda Bear. 11 faixas com produção de Panda Bear e Sonic Boom. Lançado pela Paw Tracks/Vigilante em Abril de 2010.]
[rating:4/5]
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